“Fui aprovada em um concurso público para trabalhar 36 horas semanais no regime da CLT. Considerando que preciso acompanhar meu filho com necessidades especiais em tratamentos médicos freqüentes, solicitei a redução de minha jornada de trabalho, mas a Administração negou meu pedido alegando não haver previsão legal”. Pode isso Doutor?
Analogia
Em casos como o apresentado acima em que a Administração Pública invoca a ausência de previsão legal, cumpre destacar que vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Art. 5º, XXXV da CF/88).
Assim, diferente da Administração Pública, o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico (Art. 140 do CPC), devendo, ao aplicá-lo, atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana (Art. 8º do CPC).
Neste contexto, embora a Consolidação das Leis do Trabalho não regulamente a redução da jornada com manutenção do salário para trabalhadores com dependentes com necessidades especiais, o Art. 98, parágrafo 3º, do Regime Jurídico único dos servidores públicos da União (Lei nº 8.112/1990), garante o horário especial ao servidor que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, independentemente de compensação de horário.
Dessa forma, é possível utilizar-se da analogia da Lei nº 8.112/90 para estender os direitos aos empregados públicos celetistas, pois a norma atende aos princípios, aos direitos e às garantias constitucionais que asseguram o direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana.
Dever do Estado, da Família e da Sociedade
A Constituição Federal considera “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Art. 227). Além disso, estabelece que é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas com deficiência.
Assim, é dever da Empresa (como parte integrante da sociedade) assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar.
Leis Ordinárias e Convenções Internacionais
A proteção legal também encontra lugar no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.609/1990), que assegura à criança todas as oportunidades e facilidades, para facultar seu desenvolvimento integral, em condições de liberdade e de dignidade. Já a Lei 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, reconheceu expressamente que essas pessoas são consideradas, para todos os efeitos legais, pessoas com deficiência, com direito ao acesso a ações e serviços de saúde de atenção integral às suas necessidades, incluindo o atendimento multiprofissional.
E, de acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015):
Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico. (Grifamos)
Além disso, cumpre destacar que o Brasil é signatário da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York, 2007), inserida em nosso ordenamento jurídico através do Decreto nº 6.949/2009, que tem status normativo de emenda constitucional a teor do Art. 5º, §3º da CF/88, que assim dispõe em seu Artigo 7, relacionado à Crianças com Deficiência: “Em todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial” (grifamos).
Princípio da Igualdade
Outro argumento favorável ao deferimento da redução da jornada de trabalho com manutenção dos salários ao empregado público que possua dependente com necessidades especiais (autismo) é o princípio da igualdade, segundo o qual todos são iguais perante a lei, não se justificando o tratamento diferenciado pela Administração Pública em relação a servidores e empregados públicos.
Jurisprudência
Para corroborar com entendimento acima exposto, colacionamos a seguinte jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST):
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA RECLAMADA. PROCEDIMENTO SUMARÍSSIMO. EBSERH. EMPREGADA PÚBLICA. DEPENDENTE COM DEFICIÊNCIA (MÃE PORTADORA DE MAL DE PARKINSON). REDUÇÃO DE JORNADA DE TRABALHO SEM PREJUÍZO SALARIAL E COMPENSAÇÃO DE HORÁRIO. 1. A sentença, mantida pelos próprios fundamentos pelo Regional, valendo-se da aplicação analógica do artigo 98, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.112/90, com a redação determinada pela Lei nº 13.370/2016, deferiu parcialmente o pedido de redução da jornada de trabalho da reclamante, empregada pública federal, de 40 para 35 horas semanais, sem prejuízo salarial e compensação de horário, pelo prazo de 1 ano, a ser renovado mediante comprovação da condição da dependente dela com deficiência, em virtude de laudos médicos segundo os quais a sua mãe, que é portadora de Mal de Parkinson, tem um delicado estado de saúde, com necessidade de especial cuidado e acompanhamento da única filha disponível, devendo comparecer a sessões semanais de fisioterapia e fonoaudiologia e realizar viagens constantes para São Paulo para consultas relacionadas ao implante do eletrodo cerebral realizado naquela cidade. 2. Nesse contexto, e a despeito da invocação a latere, pela instância ordinária, de inúmeros princípios aplicáveis à controvérsia (a saber, aqueles contidos nos artigos 1º, III, e 227 da CF e na Lei nº 12.764/2012, além da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência promulgada no Brasil pelo Decreto nº 6.949/2009), o Juízo a quo se valeu de método de integração normativa que, longe de afrontar, dá escorreita aplicação tanto ao princípio administrativo da legalidade estrita insculpido no artigo 37, caput , da Constituição Federal de 1988 quanto ao próprio artigo 98, §§ 2º e 3º, da Lei nº 8.112/90, por força do artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42). Agravo de instrumento conhecido e não provido.
(AIRR-1854-87.2017.5.22.0004, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 12/03/2021).
Conclusão
Ante o exposto, entendemos que é plenamente possível a redução da jornada de trabalho com a manutenção do salário, independente de compensação de horários, para àqueles empregados que possuem dependentes com necessidades especiais atestada por recomendação médica.