O presente texto versa sobre as negociações coletivas entre empresas e empregados, representados por quem de direito, trazendo algumas reflexões acerca da Reforma Trabalhista no tocante à sobreposição, ou não, do negociado sobre o legislado.
Foi notória a intenção do legislador em abrir maior espaço para a autonomia de vontade das partes em relação às negociações trabalhistas, sobrepondo-se o negociado sobre o legislado.
Porém a prevalência do negociado sobre o legislado não é nenhuma novidade assustadora, pois a própria Constituição Federal de 1988 reconheceu as convenções e acordos coletivos de trabalho em seu Art. 7º, XXVI.
Tal reconhecimento permitiu que os trabalhadores, através de seus órgãos representativos, pudessem participar da formulação das normas que regerão seus contratos de trabalho, atendendo as particularidades de cada grupo de empregados que, sem dúvida, é mais benéfica que a lei geral, pois os pormenores de cada categoria somente estes conhecem e a eles pertencem.
Cabe ressaltar ainda que essas negociações não podem usurpar os direitos mínimos já conquistados pelos trabalhadores e que são considerados indisponíveis, sob pena de violar a dignidade da pessoa humana. Maurício Godinho Delgado trata dos direitos indisponíveis como “patamar civilizatório mínimo” e exemplifica que a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo e as normas de segurança e medicina do trabalho constituem direitos de indisponibilidade absoluta.
Dessa forma, as negociações coletivas de trabalho têm espaço para transacionarem os direitos patrimoniais disponíveis dos trabalhadores, com intuito de promover condições mais favoráveis do que as previstas na legislação, admitindo-se concessões mútuas.
Fechado esse parênteses, passamos a análise da Reforma Trabalhista no aspecto do negociado sobre o legislado. A Lei 13.467/2017 acrescentou os Arts. 611-A e 611-B à Consolidação das Leis do Trabalho.
O primeiro desses artigos exemplifica as matérias que poderão ser negociadas através de acordos ou convenções coletivas e que prevalecerão sobre a lei. Dentre o rol das matérias que poderão ser negociadas cabe destacar as seguintes:
III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;
XII – enquadramento do grau de insalubridade;
XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;
Nesses tópicos em específico, parece-nos que há flagrante ofensa aos direitos mínimos dos trabalhadores, haja vista que fazem parte da medicina e segurança do trabalho e o seu uso desarrazoado poderá trazer conseqüências desastrosas à saúde do trabalhador, além de caracterizar um retrocesso social.
O princípio do não retrocesso social, pouco explorado por nossa doutrina, ou quase que inexistente, caracteriza-se pela ideia de que os ganhos sociais e econômicos, após serem realizados, jamais poderão ser ceifados ou anulados, passando a ser uma garantia constitucional. Com isso, qualquer direito social consagrado jamais poderá simplesmente sair de cena. Se olharmos o histórico dos direitos sociais, perceberemos a imensa conquista obtida no século passado. Diante dessas conquistas, muito se fala em relativizar esses preceitos, mas especificamente os que dizem respeito aos trabalhadores. (TEIXEIRA, 2009, p.57).
Outro ponto bastante polêmico diz respeito ao §1º desse artigo em comento, que assim dispõe:
§ 1º No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação.
Art. 8º […]
§ 3o No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.
Ao nosso entender, houve uma flagrante ofensa ao princípio da separação dos poderes nesse dispositivo, pois o Poder Legislativo acabou por se intrometer na forma como o Poder Judiciário deve realizar o julgamento dos casos que lhe forem apresentados, além de ofender também o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, insculpida no Art. 5º, XXXV da CF/88: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Da forma como proposta, o Poder Judiciário deixará de analisar a legalidade e constitucionalidade das negociações coletivas, o que não se pode admitir em hipótese alguma, sob pena de ofensa ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário e ainda, de abusos e arbitrariedades da parte mais forte nas negociações.
Um ponto positivo aos trabalhadores foi inserido no §3º do Art. 611-A, que garantiu a estabilidade provisória no emprego enquanto vigorar o instrumento coletivo que contenha cláusula que reduza o salário ou a jornada.
CLT, Art. 611-A […]
§ 3o Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo.
O Art. 611-B da CLT, acrescentado pela Reforma Trabalhista, traz vedações as negociações coletivas de trabalho, tornando o objeto ilícito quando suprimir ou reduzir os direitos que, em sua maioria, estão assegurados constitucionalmente.
Esse artigo, na realidade, não necessitaria nem mesmo estar ali, pois é uma cópia quase que fidedigna do Art. 7º da CF/88, por isso não merece maiores comentários.
Porém, o que nos chama a atenção no citado dispositivo é seu Parágrafo Único, que assim estabelece:
CLT, Art. 611-B. Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos:
[…]
Parágrafo único. Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo.
Discordamos do legislador nessa questão, pois acreditamos que o excesso de trabalho e a escassez de intervalo para descanso e refeição estão intimamente conectados com a saúde e segurança do trabalhador.
Assim, a manutenção da jornada de trabalho dentro dos limites constitucionais (8h diárias e 44h semanais) e a concessão dos intervalos para descanso e refeição são medidas que se impõe diante do dever de reduzir os riscos que o ambiente de trabalho representa para a saúde e a vida dos trabalhadores.
Para finalizar essa reflexão, entendemos que o negociado sobre o legislado é um progresso social, desde que utilizado para promover condições laborais mais favoráveis dos que as previstas em lei, pois esperar mudanças legislativas para ajustar cada setor tornaria a CLT a maior legislação do planeta, haja vista tantas particularidades existentes entre as várias categorias de trabalhadores do Brasil.
Assim, para se atingir o equilíbrio nas relações trabalhistas, atender à função social da empresa e a valorização do trabalho humano, as negociações coletivas devem respeitar os princípios constitucionais de direito do trabalhador e assegurar patamares mínimos e dignos de proteção aos trabalhadores, sob pena de retrocesso social.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 24/04/2019.
________. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 24/04/2019.
TEIXEIRA, Sérgio Torres; BARROSO, Fábio Túlio. Os princípios do direito do trabalho diante da flexibilização laboral. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Porto Alegre, n.3, p. 57-69, jul./set. 2009.